Sistemas alimentares: o futuro da justiça climática passa pelo campo 

16/10/25

“A agroecologia continua a crescer, tanto na ciência como nas políticas. É uma abordagem que ajudará a enfrentar o desafio de acabar com a fome e a desnutrição em todas as suas formas, no contexto da necessária adaptação às mudanças climáticas.” – José Graziano da Silva, então Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), no I Simpósio Internacional sobre Agroecologia para a Segurança Alimentar e Nutrição, 2014 

O Brasil é celebrado como potência agroalimentar, exportamos grãos, carnes e frutas em volumes recordes. Mas essa abundância contrasta com a realidade de insegurança alimentar, que ainda atinge milhões. A boa notícia é que, em 2025, o país, mais uma vez, saiu do Mapa da Fome da ONU, após retirar mais de 40 milhões de pessoas da insegurança alimentar entre 2022 e 2024.1 Um grande avanço, mas longe do fim do problema. 

Cerca de 27% dos domicílios enfrentam algum grau de insegurança alimentar. Isso significa que o acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de forma regular, sem comprometer outras necessidades essenciais, respeitando a diversidade cultural e ambiental é limitado ou incerto, variando desde a preocupação com a falta de alimentos até a fome em si. Desse total, 5,3% estão em insegurança moderada, isto é, quando o acesso aos alimentos é comprometido de forma intermitente ou reduzida; e 4,1% vivem em insegurança severa, em que a capacidade de se alimentar de forma adequada está drasticamente limitada e a fome se impõe como realidade cotidiana.

Esses dados demonstram como o Brasil segue desafiado pelo funcionamento de seus sistemas alimentares – o conjunto de processos que envolve a produção, distribuição e consumo de alimentos. Atualmente, esse sistema se apoia na concentra de terra e renda, na exploração da mão-de-obra rural e na degradação dos territórios. Ele responde por mais de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa.  

É importante, porém, diferenciar os papéis que coexistem nesse cenário. O agronegócio se apoia em monoculturas e na pecuária, avançando sobre biomas como a Amazônia e o Cerrado, voltado sobretudo à exportação de commodities e responsável por grande parte das emissões do país. Já a agricultura familiar tem um papel central no abastecimento interno: são responsáveis pela maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e brasileiras e, em muitos casos, articulam práticas mais diversas, de menor impacto ambiental e com maior vínculo comunitário. 

A Amazônia ocupa um lugar central nesse cenário, pois longe de ser apenas a “floresta em pé”, ela funciona como reguladora de chuvas que irrigam lavouras no centro-oeste, sudeste e Bacia do Prata. Quando a floresta é derrubada – sobretudo para dar lugar à pecuária e à soja de exportação –, as consequências vão muito além da perda de biodiversidade: secam rios, diminuem as chuvas, colapsam rotas de transporte fluvial e cresce a vulnerabilidade de milhões de pessoas. 

Proteger a Amazônia é também romper o ciclo vicioso que sustenta os atuais sistemas alimentares, e é justamente esse debate que estará no centro da 30ª Conferência Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30), o principal espaço de negociação climática global, reunindo quase 200 países para avaliar os avanços do Acordo de Paris e definir novos compromissos de combate às mudanças climáticas. 

Mais do que simbolismo geográfico, a conferência em Belém do Pará será um marco porque coloca frente a frente dois modelos. De um lado, o que se baseia em monoculturas, concentra riqueza e externaliza custos sociais e ambientais. De outro, alternativas já presentes em diferentes territórios, que mostram que é possível produzir de maneira justa, diversa e sustentável. Essa disputa não é abstrata: ela se materializa no cotidiano de trabalhadores rurais, de comunidades tradicionais e de milhões de famílias que convivem com a fome em um país abundante. 

Entre as alternativas possíveis, a agroecologia se destaca por articular ciência, práticas agrícolas sustentáveis, políticas e organização social, combinando saberes tradicionais e inovação científica. Ao reduzir a dependência de insumos químicos, ampliar a biodiversidade e fortalecer a autonomia de agricultores familiares, a agroecologia mostra que é possível produzir alimentos saudáveis sem destruir territórios. 

“A agroecologia é política; exige que desafiemos e transformemos as estruturas de poder na sociedade. Precisamos colocar o controle das sementes, da biodiversidade, da terra e dos territórios, das águas, do conhecimento, da cultura e dos bens comuns nas mãos dos povos que alimentam o mundo.”  – La Vía Campesina, 2014 

Exemplos concretos dão corpo a essa transformação. No Semiárido nordestino, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) mobiliza milhares de famílias em torno de cisternas, bancos de sementes crioulas e quintais produtivos, muitas vezes conduzidos por mulheres.

A Escola da Terra, criada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), fortalece esse movimento ao articular formação política e prática comunitária. Em comunidades como a Padre Tiago, famílias realizam mutirões para expandir sistemas agroflorestais coletivos, combinando produção de alimentos, recuperação ambiental e educação popular.

No Sul, a Rede Ecovida conecta mais de 5.000 famílias agricultoras em processos de certificação participativa que abastecem feiras e programas públicos. Na Bahia, a Rede Povos da Mata reúne agricultores, quilombolas e comunidades tradicionais em torno da certificação coletiva da produção agroecológica.

Em assentamentos de reforma agrária pelo país, o MST mantém hortas, cooperativas e até produção de arroz orgânico em escala. São iniciativas diversas, protagonizadas por homens, mulheres e jovens, que abastecem mercados locais, programas institucionais e até exportações diferenciadas. 

Na região amazônica do Pará, dois assentamentos rurais estão mostrando como é possível integrar a produção agrícola com a restauração florestal, e ao mesmo tempo garantir alimentos para as comunidades locais. As iniciativas combinam sistemas agroflorestais, plantios diversificados e recuperação de áreas degradadas, demonstrando que restaurar florestas e produzir comida podem andar juntos, promovendo tanto a segurança alimentar quanto a proteção ambiental.

Essas experiências mostram que a agroecologia é uma construção coletiva, que envolve agricultores, povos indígenas, quilombolas, organizações sociais e consumidores. Não se trata apenas de alternativas pontuais, mas de caminhos capazes de orientar políticas públicas e inspirar compromissos internacionais.

Foto: Evelyn Freitas / Oxfam Brasil

É nesse contexto que a COP 30 assume relevância. O risco é que corporações e setores do agronegócio capturem o debate e empurrem falsas soluções: créditos de carbono baseados em monoculturas, pacotes tecnológicos vendidos como “climate-smart” ou propostas de agricultura de baixo carbono dependente de insumos químicos. Todas prometem eficiência, mas reforçam a lógica de exclusão que concentra terra e renda e deixa milhões em insegurança alimentar. 

Ao mesmo tempo, a COP 30 abre uma oportunidade rara. O fato de acontecer no Brasil e na Amazônia dá visibilidade para a urgência de alinhar agricultura e clima. É o momento de reconhecer os sistemas alimentares como eixo estratégico do combate à crise climática e assumir compromissos que fortaleçam a agricultura familiar, reduzam o uso de agrotóxicos, incentivem dietas mais sustentáveis e assegurem uma transição justa. Para ser legítima, a conferência precisa também incluir as vozes historicamente silenciadas: trabalhadores rurais, mulheres, povos indígenas, quilombolas, juventudes e comunidades tradicionais que já constroem soluções cotidianas para alimentar o país e proteger seus territórios. 

A força para essa transformação não virá apenas das negociações oficiais. Ao longo de décadas, a sociedade civil brasileira acumulou capacidade de propor políticas e disputar modelos. Foi assim com o programa de cisternas, com a inclusão de alimentos agroecológicos na merenda escolar e com os sistemas de certificação participativa. Essas conquistas são prova de que, quando organizada, a sociedade civil é capaz de produzir alternativas reais e disputar o rumo do desenvolvimento. 

Na Oxfam Brasil, temos atuado para que a COP 30 seja um espaço legítimo e inclusivo, onde a justiça climática esteja no centro das negociações. Isso significa fortalecer a atuação e a incidência de lideranças nos territórios, apoiar formações de mulheres negras, jovens e comunicadores, produzir conhecimento crítico sobre as intersecções entre desigualdade, clima e justiça social, e articular campanhas que denunciam os grandes emissores de carbono e pressionam por reparação histórica. Também estamos engajados em redes estratégicas – como o GT Clima da Frente Parlamentar Ambientalista, a Rede Vozes Negras pelo Clima e a articulação da COP do Povo –, que buscam garantir protagonismo popular, amazônico e antirracista na agenda oficial da conferência. 

Dentro dessa estratégia mais ampla, o Programa de Justiça Rural e Desenvolvimento conecta justiça climática e justiça rural. Nosso objetivo é enfrentar as desigualdades no campo, fortalecer sindicatos e organizações de trabalhadores assalariados rurais, dar visibilidade a violações em cadeias produtivas e pressionar por políticas públicas que responsabilizem empresas e garantam direitos. Realizamos pesquisas, mobilizações e incidência política que evidenciam a relação entre sistemas alimentares e a crise climática, e levaremos esse acúmulo para a COP 30 com a convicção de que não haverá justiça climática sem transformar os sistemas alimentares. 

A COP 30 será, portanto, mais do que uma conferência climática. Ela será o palco onde o mundo decidirá se seguirá insistindo em soluções corporativas e frágeis, ou se abrirá espaço para a construção de sistemas alimentares justos e sustentáveis. O Brasil tem diante de si a chance de mostrar que a justiça climática só será possível com justiça rural – e que a agroecologia é o caminho que conecta as duas. 

Referências

1 FAO (2025). Relatório SOFI 2025 mostra que 673 milhões passam fome no mundo e que Brasil deixa o Mapa da Fome. Centro de Excelência contra a Fome. Disponível em: centrodeexcelencia.org.br

2 IBGE (2023). Food Security in Brazilian households increases in 2023. Agência de Notícias IBGE. Disponível em: agenciadenoticias.ibge.gov.br

3 CNSAN (2004). II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília: Ministério da Saúde / CONSEA. Disponível em: bvsms.saude.gov.br

4 FAO (2021). Food systems account for more than one-third of global greenhouse gas emissions. FAO Newsroom. Disponível em: fao.org

5 VON DER WEID, Jean Marc (2025). Estudos de caso sobre agroecologia no Brasil. Pesquisa elaborada a pedido da Oxfam Brasil. Documento interno, não publicado. 

6 CPT (2024). Com Escola da Terra, famílias da comunidade Padre Tiago fazem mutirão e expandem sistema agroflorestal comunitário. Comissão Pastoral da Terra. Disponível em: cptnacional.org.br

7 WRI Brasil (2024). Floresta e produção de alimentos crescem juntos em assentamentos na Amazônia. World Resources Institute Brasil. Disponível em: wribrasil.org.br

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