Calendário 2026: Conheça o artista Rafael La Cruz

20/10/25

Conheça o artista visual e cineasta Rafael Lacruz, nascido em Contagem (MG), é o nome por trás das ilustrações do calendário Oxfam Brasil 2026, produto de captação de recursos da organização. Com uma trajetória marcada pela arte urbana, pelo diálogo com o hip-hop e pela pesquisa sobre a representação de pessoas negras nas artes visuais, Lacruz constrói obras que entrelaçam memória, resistência e afetos.

Nesta entrevista, ele fala sobre sua trajetória, suas influências artísticas, sua visão sobre as desigualdades no Brasil e o processo criativo por trás das obras que compõem o calendário.

Você pode contar um pouco sobre sua história?

Minha história começa com o incentivo da minha mãe — inclusive o nome “Lacruz” é um batismo dado por ela. Desde os quatro anos, ela e minha avó me estimulavam a desenhar. A TV também foi uma referência importante, especialmente com os animes japoneses, que me despertaram para o desenho. Aos 12 anos, fiz meu primeiro curso de pintura a óleo, ainda que breve, por limitações financeiras.

Mais tarde, por meio de pesquisas autônomas, cheguei à aquarela, às caricaturas e às charges. Em 2012 publiquei algumas delas num jornal regional do bairro onde cresci, o Jardim Industrial, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. A partir daí comecei a expandir meu trabalho, fazendo caricaturas em eventos e cursando publicidade — primeiro na graduação, depois num curso técnico, onde formei.

A comunicação e o audiovisual entraram na minha trajetória como desdobramentos naturais. Sempre fui muito cinéfilo e levei isso para a direção de arte e ilustração. Fiz centenas de ilustrações nesse período, inspiradas em cartazes de cinema, em artistas como Toulouse-Lautrec, e fui transitando entre linguagens: animação, quadrinhos, capas de livros, grafite.

Em 2015 entrei no curso de Conservação e Restauração da UFMG, que ampliou meu olhar para a cultura popular e o patrimônio material, temas que hoje protagonizam meu trabalho. Em 2020, durante a pandemia, nasceu o projeto Legacy, que virou quadrinho em 2021, viabilizado pela Lei Aldir Blanc, e que agora está sendo adaptado para um curta-metragem de animação.

Hoje atuo entre o cinema, a arte urbana e a ilustração, integrando coletivos de hip-hop, grafite e quadrinhos. Já publiquei trabalhos fora do Brasil, como na revista Retracing Histories, da Universidade de Colônia (Alemanha), que reúne artistas afrodiaspóricos do mundo todo.

Resistência contra a ditadura militar – Arte do calendário 2026 – Crédito: Rafael La Cruz

Quais são as suas influências como artista?

Minhas influências são muitas e diversas. Tenho referências contemporâneas, especialmente de artistas da arte urbana, como o grafiteiro Bob, da Pedreira Prado Lopes, e a artista indígena Cacal, cuja postura e força me inspiram.

Gosto muito dessa ideia de trabalhar em suportes diversos, desde papel ao muro, à madeira, a materiais não tão usuais, e acabo trazendo isso para o meu trabalho também, porque a minha pesquisa estética é muito ampla. Pego desde uma Frida Kahlo, a Jordan Pill, Luis Buñuel, Tilde Gambino, Rosana Paulino — que é brasileira —, os irmãos Timóteo da Costa — que também são brasileiros —, figuras que tive uma pesquisa acadêmica muito forte, sobretudo em termos de representação de negros nas artes visuais. Não gosto de usar essa expressão, mas na ausência de outra, digamos: como objetos de retrato e como protagonistas.

Artistas que produziam em um período histórico muito importante, como os irmãos Timóteo da Costa — sobretudo Artur Timóteo da Costa, que acompanho e pesquiso mais. Ele atuou por volta do século XVII, pós-abolição, e fazia retratos de pessoas negras no contexto carioca. Foi uma figura muito importante por ter sido o primeiro negro a viajar fora do Brasil enquanto artista, com bolsa para a França, e tinha esse caráter de multilinguagem, algo que acredito ser muito baseado na precariedade. Como não nascemos herdeiros, temos que nos virar de alguma maneira, e naquela época não era diferente. Por conta disso, a gente acaba se especializando, se desdobrando em várias linguagens à medida que as oportunidades vão aparecendo.

Minha pesquisa também vai muito por influências de acervos africanos. Trago uma questão muito forte de máscaras no meu trabalho, que aparece muito em Legacy, tanto no quadrinho, como nas ilustrações, no grafite e no filme. Trago também influências afro-brasileiras, especificamente das religiões afro-brasileiras, sobretudo no projeto Comigo ninguém pode, que carrego há pelo menos uma década e que acaba sendo sintetizado no Legacy. Gosto de atribuir ao meu trabalho narrativas autoficcionais, que se desdobram desde uma estrutura mais clássica — começo, meio e fim — até questões mais subjetivas, trazendo elementos de vivências pessoais e ficcionais, ampliadas com o repertório de referências mais diverso possível.

‘Marcha das Mulheres Negras’ – Arte do calendário 2026 – Crédito: Rafael La Cruz

Como você vê as desigualdades no Brasil atualmente e historicamente?

Acredito eu que não tem como falar das desiguldades sem citar a nossa história escravocrata, que esteve ali atrelada ao extermínio de pessoas negras e indígenas, os originários que estavam aqui antes mesmo da colonização. E isso vai se reverberar dentro de uma estrutura forjada a partir do momento que existe ali uma falsa abolição, que vai falsamente colocar para nós que há uma liberdade. Então, as desigualdades no Brasil, sobretudo, dizem muito respeito a uma falsa ideia de uma harmonia entre raças

Tem um autor, enfim, não vou lembrar agora especificamente, mas que fala muito sobre essa ideia de conciliação sem ter questões relacionadas aos reparos históricos, que não são meras questões acadêmicas, não são coisas que são pautadas em discursos apenas, muito pelo contrário, são construções históricas justamente que permeiam todos os ônus e as violências que o Estado brasileiro cometia desde a sua fundação até os dias atuais, como uma massa de manobra para manutenção de poder. Então, eu não consigo descolar muito do contexto brasileiro atual, do contexto brasileiro histórico, porque acho que as coisas são muito dialéticas, elas dialogam entre si e são coisas que estão implicadas dentro da estrutura, estrutura capitalista, racista, enfim.

Acredito que as desigualdades passam pela impossibilidade de sonhar. Quando a estrutura social impede pessoas negras de sonhar, ela desumaniza. Desde cedo senti essa distância nos livros de história — como se a nossa história fosse algo distante, e não algo vivo.

Hoje, ainda há desconhecimento sobre episódios fundamentais, como a Revolta dos Malês. Essa falta de memória nos torna vulneráveis a narrativas que defendem o opressor. Por isso, para mim, entender e narrar a própria história é um ato político e libertador.

Pode falar um pouco sobre suas artes que estão no calendário Oxfam Brasil 2026?

São muitas camadas…É uma revisitação da história brasileira, das lutas, da resistência. Porque chega num ponto que a gente cansa de resistir, e a gente só quer existir. A gente se pauta muito na resistência, quando a gente muitas vezes só quer existir e ter o mínimo de dignidade. Então foi uma revisitação da história brasileira, de momentos muito importantes, e que são histórias recentes também.

Então, são trabalhos que revisitam momentos importantes, histórias recentes também. Passam, por exemplo, pelo período da ditadura, pelas conquistas construídas na resistência àquele regime — que estava em contexto latino-americano — e pela redemocratização, com a Constituição brasileira, que é um marco importante, um exemplo mundial, apesar de muitos rasgarem ela e, ao mesmo tempo, dizerem que estão defendendo.

Para mim tudo isso é muito significativo, porque ele parte de um lugar de rememoração. Acho que falta muito da gente disso, né?

As artes também trazem as lutas das mulheres, como a Marcha das Margaridas, e me fazem lembrar da Marcha das Mulheres Negras e das ocupações urbanas, algo muito presente para mim, pelo território onde vivo e pela ocupação da qual participei desde o primeiro dia. Essa luta pelo direito à moradia é muito cara para a população negra, pobre e periférica.

Essa curadoria de eventos históricos que estão presentes nas ilustrações foi, ao mesmo tempo, um movimento de rememoração e reconhecimento. Eu sou um jovem que nasceu na década de 1990 — ou seja, depois da ditadura —, então não vivenciei aquele período, mas vivi outros: as ocupações, as manifestações contra o aumento das tarifas, os debates sobre tarifa zero, as greves, a atuação do MST, com quem já estive junto em vários momentos.

Essas experiências todas se atravessam nas obras. Acho que o mais difícil para nós, enquanto brasileiros, é conseguir se enxergar dentro do que é representado — e tentei fazer isso com esse trabalho.

Na parte visual, há uma pesquisa de imagens e referências icônicas, uma paleta de cores muito usada nas artes de protesto latino-americanas, mas que procurei combinar de maneira não óbvia. A ideia era ultrapassar a bolha, então uso cores mais vibrantes, elementos mais pop, para criar uma identificação imediata com quem vê. As cores, para mim, funcionam como um verniz — aquele brilho que chama a atenção de longe, mas que, quando você olha mais de perto, revela detalhes e camadas de sentido.

Tem muita presença do grafite e do grapixo, linguagens com as quais me identifico e que trago para o meu trabalho em todos os suportes. Foi um processo riquíssimo e muito responsável, de me ver e me sentir representado por meio dessas imagens — e espero que quem as veja também se reconheça nelas.

Acredito que a arte precisa correr riscos — e, nesse projeto, quis correr o risco de tocar pessoas diferentes, provocar olhares, reabrir memórias. Mais do que um exercício de resistência, é um convite à existência.

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