O Brasil foi o último país a abolir formalmente a escravidão, mas os três séculos de exploração e violação de seres humanos escravizados deixaram marcas profundas. O crescimento de setores como o da agricultura se deu na lógica de um sistema de produção que ainda se sustenta dessa exploração, revelando a precariedade das condições oferecidas aos trabalhadores rurais, consideradas como as piores do Brasil.
Hoje, 69,6% das trabalhadoras e trabalhadores rurais são pessoas negras e 58,3% estão na informalidade. Isso determina não apenas a privação de direitos garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas, principalmente, a continuidade da exploração de uma população majoritariamente negra.
Se ampliarmos o nosso olhar, percebemos que a situação se encontra em um estado ainda mais crítico, quando apenas 12,1% das vagas de trabalho formalizadas no campo são ocupadas por mulheres — número que não chega nem perto de refletir o total da mão de obra feminina no campo.
Para realmente alcançar soluções duradouras, o diálogo social e seus pactos decorrentes devem ser sistêmicos e envolver todos os atores das cadeias produtivas. Somente dessa maneira, podemos avançar na direção de uma cultura do trabalho que definitivamente deixe para trás a escravidão, reconheça pessoas negras enquanto seres humanos, possuidoras e possuidores de direitos, e garanta o trabalho digno como um direito inalienável de cada uma e cada um deles.
Nesse sentido, é importante que qualquer iniciativa que busque promover o trabalho decente na agropecuária traga um olhar amplo, capaz de considerar o papel dos diferentes atores das cadeias produtivas com recomendações de devida diligência. Os processos de diálogo social precisam almejar pactos sociais para terem mais legitimidade e, portanto, maior chance de sucesso, pela sua amplitude e participação.
O Brasil, sob os governos petistas, desenvolveu uma tradição de participação social na construção de políticas públicas, com diferentes experiências.Temos como exemplo os processos das conferências nacionais que visam a construção, desde a base, de consensos nacionais para servir de parâmetro na melhoria das condições em diferentes áreas.
Independentemente do modelo de diálogo e participação adotado, um cuidado deve sempre ser tomado. Existe grande assimetria de condições entre os empregadores rurais, o agronegócio e os trabalhadores assalariados rurais. A informalidade é altíssima e o setor é campeão de trabalho escravo. Ao mesmo tempo, trata-se do setor mais rico da economia — o PIB do agronegócio pode responder por cerca de 21,5% do PIB do país neste ano. É importante que o processo de diálogo reconheça isso, garantindo participação equânime dessas realidades.
Também é interessante envolver outros atores no diálogo, além dos representantes de trabalhadores e empregadores. Contudo, o cuidado deve ser tomado para não diluir o peso político da representação dos trabalhadores no processo decisório. Sobre políticas e práticas empresariais dos empregadores rurais, é crucial permitir o acesso à fazenda dos sindicatos de trabalhadores assalariados rurais sem anúncio prévio. Os sindicatos devem poder conversar com os trabalhadores sem a presença do empregador, visitar as instalações de trabalho, alojamento e refeitório e contar com espaço para realização de reuniões, assembleias e afixar comunicados.
Para as cadeias de fornecimento agrícolas, torna-se urgente a transparência de uma política corporativa sobre a responsabilidade com direitos humanos, utilizando como base o modelo de política empresarial de cadeias de fornecimento agrícola responsáveis, como o proposto pelo Guia OCDE e da FAO. A divulgação dos fornecedores precisa ocorrer até o nível da fazenda, além de ser atualizada com regularidade e incluir o nome, CNPJ, estado, município e endereço, latitude e longitude das fazendas.
Com o devido comprometimento estabelecido, metas estruturadas e dedicação de todos os envolvidos, será possível avançar na conquista de um cenário rural que definitivamente deixe para trás a escravidão, reconheça pessoas negras enquanto seres humanos, possuidoras e possuidores de direitos, e reconheça o trabalho digno como um direito inalienável de cada uma e cada um deles.